quinta-feira, 16 de abril de 2009

A Carta do Vinho



O vinho é um valor civilizacional e critério de qualidade de vida. É um bem cultural. É um factor da vida social. É condição para o desenvolvimento económico, mas também para o progresso tecnológico e científico de numerosas regiões da Europa e do mundo.

Comecemos com uma declaração de interesses: o texto acima não é do signatário. Trata-se do texto de abertura da Carta do Vinho. Tem um autor colectivo, a CERV, Conferência Europeia das Regiões Vitícolas, antecessora da AREV, Assembleia Europeia das Regiões Vitícolas e foi aprovada em 21 de Outubro de 1991, na III Sessão Plenária da organização, celebrada em Vilafranca del Penedès, na Catalunha. Numa época em que eram muito acentuadas as diferenças entre os chamados Velho e Novo Mundo vitícola, a Carta do Vinho está particularmente vocacionada para o que se consideravam as especificidades do velho mundo, a Europa. Só aqui o vinho teria identidade própria, um “bilhete de identidade”, com origem num “terroir” específico. Partia-se do princípio de que o vinho teria tido origem na Europa e só aqui poderia ter identidade … e carácter. Tal aconteceria em contraposição com o Novo Mundo. Aí, o vinho só poderia ter um designado “carácter industrial”, sendo indiferente a sua proveniência.

O debate à volta destes dois mundos tem sido duro e prolongado. Contudo, nos últimos 15 anos assistimos a uma verdadeira aceleração da história. Da história do vinho. As regiões do Novo Mundo – que se têm multiplicado e, sobretudo, alargado – passaram de um tempo em que não havia qualquer tipo de limitação à plantação ou às práticas enológicas, para um tempo novo, em que a profissão se organizou e definiu ela própria um conjunto de regras. As suas universidades e os seus centros de investigação desenvolveram fortes competências na área da vitivinicultura, formando enólogos com trabalho de excelência, que entretanto se foram distribuindo pelo mundo. A qualidade do vinho tem vindo a ser apurada, estando hoje ao nível dos melhores. Os territórios vitícolas preparam-se com grande competência para o turismo do vinho, podendo hoje encontrar-se regiões que definem o seu carácter exactamente pela produção e comércio do vinho: o seu desenvolvimento e projecção faz-se através do produto e de todas as actividades que a ele podem ser associadas. As próprias empresas vitivinícolas do Velho Mundo desenvolveram e diversificaram a sua produção no Novo Mundo…

O Velho Mundo, por seu lado, tem feito assentar as suas políticas para o sector num vasto conjunto de limitações: à plantação, às práticas enológicas, à irrigação… Hoje, a reforma da OCM, Organização Comum do Mercado do Vinho, ruma em sentido contrário! Ao mesmo tempo que vão diminuindo as fortes limitações de ontem, a Europa abre as suas portas aos competentes enólogos originários do Novo Mundo. Acolhe concursos monovarietais. Negligencia, em tantos casos, o enorme potencial das castas autóctones – quando vemos regiões do Novo Mundo a assumirem as suas próprias especificidades no que às castas respeita, como acontece com a Malbec, em Mendoza, na Argentina. O mercado é cada vez mais aberto, global … e exigente. Quer qualidade em toda a cadeia do produto e também na sua região de origem. Quem tem a sorte de conhecer regiões vitícolas pelo mundo fora, do Velho e do Novo Mundo, sabe bem que em todo o lado se encontram regiões com qualidade – de excelência, mesmo – e regiões sem qualquer tipo de qualidade. O mesmo se passa com os vinhos. O que significa que a diferenciação se faz exactamente pela qualidade global e, cada vez menos, por áreas geográficas. O que quer dizer que a Carta do Vinho – ou, pelo menos, as ideias nela expressas – tem cada vez menos um cariz europeu, sendo cada vez mais universal. Nem sequer se argumente com o facto de o vinho ter origem na Europa! Aliás, parece certo que teve origem no mediterrâneo oriental. Conhecemos descrições do seu cultivo e consumo no antigo Egipto. A Bíblia fala, por exemplo, nos vinhos de Israel e de Damasco. Tudo na margem sul do “mare nostrum”…

Já no que respeita ao dito Novo Mundo, não podemos deixar de sublinhar algo que é muitas vezes esquecido: a cultura da vinha foi disseminada pelos colonos europeus nos novos territórios, não apenas para consumo próprio, mas sobretudo por motivos religiosos, por ser um elemento essencial à celebração litúrgica. Afinal, um motivo principal que levou os europeus à primeira era global da nossa história.

Manuel de Novaes Cabral
blue Wine 21

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