quinta-feira, 16 de abril de 2009

Argentina - Um país à procura de um lugar no mundo do enoturismo



A Argentina foi, desde a segunda metade do século XIX, um relevante produtor de vinho, sobretudo no eixo que se estende de San Juan, no norte, centrado em Mendoza e se desenvolve até Neuquén-Rio Negro, já na Patagónia. É preciso não esquecer a evolução demográfica: o território imenso deste país, em 1869 estava ocupado apenas por cerca de três milhões de habitantes; na viragem do século deu um enorme salto, pois em 1914 tinha oito milhões; hoje ultrapassa já os 40 milhões – cerca de metade dos quais concentrados na província-capital de Buenos Aires. Mesmo assim, a Argentina tem uma densidade populacional baixíssima: 14 habitantes por km2.

Como é evidente estamos perante um país de imigração, sobretudo de origem italiana e espanhola. As tradições mediterrânicas de convivialidade, mas também do cultivo da vinha são levadas e especialmente acarinhadas nos países de acolhimento. É claro que o vinho produzido era de muito baixa qualidade e era consumido no mercado interno na sua quase totalidade, sobretudo na populosa capital – para onde era conduzido na então e ainda existente ligação ferroviária entre Mendoza e Buenos Aires, entretanto desactivada durante a governação de Carlos Menem.

Nos anos oitenta do século passado, o potencial vitivinícola da Argentina é descoberto. Em passos rápidos faz-se o caminho da reconversão – em grande parte com o investimento de capital estrangeiro. Grandes nomes do mundo do vinho estão intimamente ligados a essa reconversão (1). Explora-se até à exaustão a grande casta do país, o Malbec. O terreno e o clima revelam-se adequados para muitas outras castas. Excelentes terrenos permitem fazer excelentes vinhos. Entretanto, milhares de hectares, na maioria de extenso deserto, vão sendo transformados em vinhedos de referência. A paisagem transforma-se. Grande parte das propriedades vitícolas estende-se pelo sopé da imponente cadeia dos Andes. Das regiões mais próximas de Mendoza avista-se o seu mais alto cume, o Aconcágua, com quase sete mil metros de altitude! A paisagem é magnífica! O clima bastante agradável.

A arquitectura também desempenha o seu papel: para além do ordenamento dos vinhedos, projectam-se adegas absolutamente fantásticas, quer pela imponência e arrojo, quer pela integração na paisagem que, só por si, merecem ser visitadas. Preparam-se para receber turistas, muitas delas com pequenas unidades hoteleiras e restaurantes de grande categoria internacional.

Com toda esta matéria-prima como pano de fundo, o enoturismo surge naturalmente como uma promissora solução, não só para a promoção das próprias adegas e dos seus vinhos como, sobretudo, para a dinamização do turismo das regiões envolventes. Assim, depois de alguns anos de experiências e apostas individuais e de diálogo institucional, chegou o momento que as diferentes entidades envolvidas entenderam conveniente e adequado para se prepararem para o futuro. Para o efeito elaboraram uma proposta e estão a desenvolver o trabalho de acordo com o plano por todos aceite. Qual a realidade actual? Quais as debilidades e quais as potencialidades? O que podem aprender com a experiência de outros países?

OS DESAFIOS A ENFRENTAR
Os múltiplos debates em que tive o privilégio de participar, com a intervenção de representantes de todos os agentes que devem efectivamente estar envolvidos neste processo, mostram bem a vontade colectiva de um país e de todas as instituições e empresas no sentido de se colocarem no mercado do turismo, num segmento de importância e de valor crescente e cada vez mais disputado.

Quais são as grandes vantagens que a Argentina pode apresentar no mercado do enoturismo? Não querendo ser exaustivo poderei apontar as seguintes: desde logo, um bom posicionamento da imagem do país; o vinho da Argentina goza já de inegável prestígio no mercado internacional; tem adegas de grande nível arquitectónico, muitas delas abertas ao público com restauração de qualidade e muito boas possibilidades de alojamento; boa combinação entre a paisagem e a cultura, bem como sinergias com outras modalidades de turismo que estão em crescimento (turismo rural, gastronómico, cultural, de aventura…); associação com referências de grande impacto (Patagónia ou Buenos Aires). Façamos agora um exercício semelhante para os aspectos negativos: falta uma “marca chapéu”; distância dos maiores centros emissores de turismo e ligações aéreas difíceis (o que obriga a dar particular atenção ao turismo interno, especialmente com origem em Buenos Aires e ao proveniente do Brasil); difíceis ligações aéreas internas; insuficiente conhecimento da procura; parca oferta de hotelaria de alta qualidade; inexistência de um sistema de sinalização; grande descoordenação dos operadores; pouco cuidado com a envolvente natural e cultural; falta de segurança. Dos aspectos atrás sumariados, e no que ao enoturismo respeita, podemos concluir que a Argentina vitícola é um diamante em bruto. Acrescentaria que a sua lapidação é muito difícil. Contudo, uma vez lapidado – e a vontade nesse sentido é manifesta – o seu brilho vai fazer-se sentir no mercado mundial do turismo relacionado com a vitivinicultura. Do muito que pude observar e das centenas de conversas que tive, julgo ser de sublinhar duas questões. Por um lado, todos os aspectos relacionados com a segurança. De uma forma radical, diria que turismo é incompatível com insegurança. E, nesse aspecto, há muito a fazer, dependendo sobretudo dos poderes públicos a melhoria da situação. Manifestamente, não é agradável, cada vez que se entra numa adega, sentir o peso da segurança privada que os proprietários são obrigados a manter. Tem-se até a sensação de estar numa “ilha de qualidade” e de segurança, completamente fora da realidade – à qual se volta necessariamente no momento da saída, caso não se tenha ido de helicóptero…

Por outro lado, as questões sociais. Voltamos à ideia da “ilha de qualidade”: nas adegas, tudo está bem e é bonito, tudo funciona bem, todos têm bom aspecto, o serviço é óptimo. O mesmo não se passa nas suas imediações. Ao contrário: é vulgar que as estradas de acesso sejam de muito má qualidade, os bairros paupérrimos, os esgotos a céu aberto! Parece evidente que os investidores privados fazem o seu papel, desenvolvendo adegas de grande qualidade – como não é fácil encontrar no chamado velho mundo vitícola - abrindo-as ao público e disponibilizando-se para participar em projectos de enoturismo em benefício de toda a região. Aos poderes públicos compete desenvolver toda a envolvente física, natural e social, pois é absolutamente necessário preservar a paisagem e o ambiente, elementos que, cada vez mais, são considerados essenciais para a existência de um turismo de qualidade. Mas não basta. As questões sociais são também determinantes. Se as pessoas que vivem nas rotas turísticas não viverem bem, não se sentirem confortáveis nas suas actividades, nas suas vidas e não entenderem o que está em causa, não vão receber bem os turistas. E estes não querem apenas ver coisas bonitas. Querem ser bem recebidos e contactar com os habitantes locais. Querem conhecer as suas vivências. Se assim não for estamos a falar apenas de um turismo de nicho, coisa que o enoturismo tende a ser cada vez menos.

Em meu entender estão aqui, nestes factores, os principais e mais difíceis desafios para construir um projecto consistente de enoturismo. Podem chegar a um projecto perfeito, teoricamente sem falhas. Mas se estes aspectos – segurança e questões sociais – não estiveram resolvidos, estaremos perante uma casa sem alicerces: não se aguenta, caindo à mais pequena contrariedade. E não é isso que gostaríamos de ver acontecer na Argentina vitícola!

(1) Sobre a nova realidade da Argentina vitivinícola e a sua ligação ao enoturismo, vale a pena reler o artigo de Nuno Guedes Vaz Pires intitulado “Argentina – a nova estrela do novo mundo” e publicado na edição número 17 da Blue Wine, de Outubro de 2007.

Manuel de Novaes Cabral
blue Wine 27

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